sexta-feira, 6 de maio de 2016

A flor-gatilho

O rapaz estava ali sentado no calçadão. Não dava pra saber por qual motivo ele estava ali, mas o fato é que ali ele estava. Suas calças já não mais lhe serviam, se é que aquilo poderia ser chamado de calças. Sem camiseta, dava pra ver as marcas que a vida lhe proporcionara. Talvez essas marcas não chegassem nem perto das que ele carregava dentro de si. A sujeira do seu corpo era tão nítida que talvez ele nem soubesse dizer a última vez que se lavou. Os ossos saltados na pele denunciavam a fome que os seus olhos não sabiam mais expressar. Seu olhar era distante, sem expressão. Vez olhava para baixo, vez olhava pra qualquer outro lugar aleatório, mas nunca olhava pra alguém. Ninguém o olhava. Será que ele é invisível? Será que só eu posso vê-lo? Talvez ele não tivesse mais força nem pra levantar a mão pra pedir ajuda. Talvez pedir já não adiantasse mais. Ah... aqueles olhos, fundos. A fome lhe tirara a expressão facial. Mas pra quê expressão facial se tudo o que precisava expressar saltava por toda a sua existência? Existência... que existência?

Mas num momento inesperado, sem saber de onde encontrar forças aquele rapaz toma nas mãos um pedaço de papelão e levanta na altura do rosto. Ali havia uma frase escrita à mão, com traços fracos e desalinhados. E nessa frase estava escrito:
"Eu sou como um câncer. A vida está doente. A sociedade está sangrando. Só um milagre pra salva-la”
Constrangido fechei os olhos, curvei a cabeça e a única coisa que pude sentir foi uma profunda dor no peito. Olhei novamente pro rapaz, que ainda estava segurando o pedaço de papelão com as forças que ainda lhe restavam naquele momento, e a comoção causada por aquela cena me constrangeu de tal forma que meu corpo ficou paralisado, sem reação. O sentimento de impotência, somado ao meu individualismo gerado por uma vida egocêntrica e materialista, meteu-me à margem da nobridade.

Fui pra casa me sentindo um fracassado e aquela frase ficou remoendo a minha cabeça. No dia seguinte, resolvi voltar ao mesmo lugar na esperança de encontrar quele moço e ajuda-lo. Era chance de apagar o incêndio que estava dentro de mim, fervendo a minha alma. Inicialmente ia ajudar aquele rapaz entregando-lhe alguns mantimentos. Peguei, também, algumas roupas velhas que estivessem em bom estado e fui até lá satisfeito pela chance de fazer a minha parte na luta contra o "câncer" da miséria.

Entretanto, quando cheguei ali não o encontrei sentado no mesmo lugar em que estava no dia anterior. Então eu saí perguntando nos arredores se alguém o tinha visto, se podiam informar o seu paradeiro, mas ninguém sabia de quem eu estava falando. Talvez ele tivesse morrido. Fui, então, até o IML pra saber se o corpo de algum indigente havia sido levado até lá. Tinha vários. Olhei um por um, mas nenhum se parecia com aquele rapaz. Procurei o serviço de assistência social da cidade pra saber se alguém poderia me dar uma luz sobre quem era aquele rapaz, mas nada. A descrição que eu tinha dele era a mesma de dezenas de moradores de rua, e em nada ajudou. Procurei-o por vários dias, mas parecia que, quanto mais eu o procurava, mais ele se distanciava de mim.

Eu nunca mais o vi. Ele simplesmente se foi sendo uma flor efêmera, uma flor-gatilho, que disparou o pólen da sua história em algum lugar e aquela mensagem impregnou em mim. Eu queria ajuda-lo, mas ele fez mais por mim. Ele me curou.

fim